24 de janeiro de 2012

Em português suave

"No ano de 1972 cheguei a Santarém. Para ficar, durante dez anos, e continuar até agora noutras paragens do Ribatejo. A denominada capital do gótico era a própria realidade de um burgo cuja grandeza histórica, riqueza agrícola, acção cultural englobando a tauromaquia, acrescida de esfusiante juventude a colocavam na classificação das cidades a emparceirar com Évora, atrás de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e Setúbal. Uma cidade alegre no viver. Um restaurante prestigiado, cafés onde apetecia estar, casas de comeres apelativos e de águas tintas e brancas originais, livraria reviralhista, cine clube prestigiado, círculo cultural de múltiplas artes, biblioteca municipal operativa para gregos (investigadores) e troianos (leitores), orquestra típica e fandanguistas constituíam a coluna dorsal da cultura da outrora vila das vilas de Portugal. Esquecia-me do Rosa Damasceno, do Sá da Bandeira, também da aconchegada sala do Taborda onde pontificava Francisco Viegas de saudosa memória. Personagens excêntricas, poetas e poetastros, aspirantes a escritores, jogadores de xadrez, fadistas, folcloristas, forcados, oposicionistas de falar grosso, outros de piar de fininho, anarquistas quanto baste, surrealistas, neo-realistas, monárquicos e republicanos conviviam no Central, no Progresso, na Brasileira, na Ribatejana, esplanada do Verde Gaio, sem grandes zangas ou alaridos. Terei entrado duas vezes na casa de finezas do Senhor Veloso, por essa razão olvidei o nome. Os incapazes de arrumarem o vinho condignamente mereciam censura nas tabernas e locandas, às vezes recebiam murros dilatados, no entanto, nada de anormal nesta cidade solarenga, farta e alegre, tendo na Feira da Agricultura um dos pontos altos da reinação festiva. O comércio atraía gente endinheirada das redondezas, a Casa Ideal tinha clientes pelo Alentejo fora. A cidade incluiu no cardápio indústrias, terrenos baratos existiam, água em abundância e de qualidade, empresários desconhecedores da significação ambígua perceberam a mais valia estratégica de Santarém, daí criarem uma fábrica de cerveja nas imediações de onde Dom Paio Pires Correia se deve ter exercitado antes da conquista do Algarve. Assim nasceu a fábrica de cerveja, baptizada de Clok. Agora a Unicer detentora da fábrica decidiu encerrá-la. Segue o percurso de outras instituições e organizações. Assim vai morrendo uma cidade, assim ganha o dormitório. Clok." Fonte: Armando Fernandes, in O Ribatejo. Notas de viagem: Um obrigado sincero, a quem me fez chegar a dita prosa. Valeu.